Textos de referência

O que e fazemos e para que? Parte 2

(* Este texto está dividido em duas partes)
Autora: Maria Adela Palcos

P. – A ginástica sueca também não tem algo a ver com isto?

M.A. – Sim, porém o que ocorre com muitas ginásticas é que elas foram desenvolvidas para a luta, para a preparação do soldado e quando se prepara um soldado a intenção é que o mesmo não se sinta, que fique meio insensível e meio automatizado. Isto é perfeito para este fim, tanto para dar como para cumprir ordens: “vá lá e mate-o”, porque o soldado insensibilizado e automatizado irá obedecer. O senso de discriminação de valores, com uma postura de joelhos rigidamente esticados e de cintura travada, fica muito diminuído. Ocorrem coisas opostas em nossa sociedade neste sentido. Por um lado estimula-se no homem esta postura de peito para fora barriga para dentro e por outro, temos 2000 anos de cristianismo dando outra mensagem: de humildade, de baixar a cabeça, saber aceitar, dar a outra face; mensagens contraditórias que fazem que não se saiba que direção tomar. Assim são criados muitos problemas, consigo mesmo e com o ambiente.

É neste sentido que a expressão, outra das ferramentas que usamos aqui, é importante para que a pessoa possa encontrar-se consigo mesma, com o que sente de verdade. Lembrem-se que, em geral, recebemos uma educação quase contrária a que nos expressemos: “não grite”, “fique quieto”, “meninos não choram”, etc.; ou que nos ensinaram a falsear nossa expressão. Se alguém está com medo deve aparentar a maior tranqüilidade ou ao contrário ter uma atitude desafiadora; se sente confiança em alguém deve dissimular para não ser explorado e assim uma série de coisas que escutamos na infância, ditas pelo pai e mãe ou porque estão no ar.

Desta maneira, aprendemos a não colocar a expressão autêntica no que sentimos, mas uma expressão inautêntica.

Esta, provavelmente, é uma das enfermidades mais graves que temos, uma das condições que nos mantém subdesenvolvidos (e não me refiro ao país, mas a cada um de nós). Não expressar o que se sente e ter que transformar, permanentemente, o sentimento, significa um desgaste de energia do qual não temos consciência e não a temos porque aprendemos a fazê-lo desde pequenos e o fazemos automaticamente. Não sabemos realmente o que sentimos, por que sinto medo, mas o que estou expressando é que me sinto muito tranqüilo. Qual sou eu? E aqui entramos em outro aspecto do nosso trabalho, o relaxamento: quando eu não sei onde estou ou para onde ir, nem quem sou – e este é um dos estados em que caímos freqüentemente, segundo o que tenho observado -, a única coisa apropriada a fazer é relaxar, relaxar completamente, isso permite-nos voltar ao próprio centro do nosso ser, a reencontrar-nos.

P. – O que você quer dizer com “o próprio centro” ou “reencontrar-nos”?

M.A. – A idéia é a seguinte, e desde logo digo que ela é muito simples e não é nenhuma doutrina, é uma hipóteses para cada um testar consigo mesmo, algo para comprovar. Eu creio que em cada um de nós há algo essencial, o que nós chamamos “essência”, outros de “eu profundo”, “alma”, “espírito”, cada um pode dar o nome que queira.

Aqui dizemos “essência”, e esta é como se fosse o centro, o coração de cada um. A envolvê-la está o que chamamos “personalidade”, que seria como uma roupa que colocamos para andar pelo mundo. Quando este traje – a personalidade – está adequado, quando é como devia ser, “uma forma de expressão da essência”, tem vários matizes. Então, posso chegar a viver de verdade, viver sendo profundamente eu, sentir que Eu Sou, além de ser covarde ou valente, além da posição social que desfruto, etc. Esta consciência de ser é o que chamei anteriormente de nosso centro.

Todo desenvolvimento e harmonia do ser humano tem a ver com tomar consciência de si, vivenciar esta consciência constantemente. Porque quase todas as confusões que fazemos têm a ver com o fato de não termos consciência de Ser; assim fazemos tais confusões constantemente para sentir a nós próprios: necessito que me queiram, necessito que me elogiam ou me ofendam (porque ocorre de tudo), necessito ser o presidente da república para sentir que eu Sou, para sentir a mim mesmo.

A autoconsciência, a consciência profunda do ser – e não me refiro à consciência de culpa (porque dessa já há demais) – é uma “avis rara”, não sei porque, porém é assim, na maioria dos casos. Muito poucas pessoas têm esta paz alcançada por sentir-se ser, por ter compreendido que ninguém tem que fazer algo especial para Ser.

O que nos acontece, na maioria das vezes, é que estamos acostumados a reconhecer-nos através de alguma qualidade. Alguma qualidade elogiada quando éramos crianças: “oh! muito bem, que generoso, como empresta seus brinquedos a seu priminho …”. Assim nos tornamos generosos e nunca vamos nos permitir um momento de egoísmo. Ou ao contrário, fomos condenados: ” que menino mau, batendo na sua irmãzinha”, e aí a criança, de repente, identifica-se com essa qualidade: “eu sou mau”, e dificilmente consegue reconhecer a bondade nele mesmo. Essa é uma das grandes travas que se produzem a nível psíquico; se lhe disserem “mau”, sai pelo mundo agredindo a todos; se lhe disserem “generoso”, passa a viver como se pudesse ser, permanentemente, generoso e isto é impossível. Ninguém tem esta possibilidade; e aí começam os problemas, porque se “eu sou generoso”, quando sinto uma pontada de egoísmo, já não sou mais eu, esta pontada me nega a existência, a possibilidade de ser. Então o eixo do meu ser está centrado em uma qualidade, porque construí minha personalidade ao redor dela. Porém, a realidade é que não sou todo assim, isso é o que chamamos de personalidade mecânica ou falsa personalidade, porque não expresso a totalidade do meu ser e sim um aspecto ou personagem; o mau, o generoso, etc.

À medida que se vai cristalizando a maneira de ser do personagem, o indivíduo aprende a se reconhecer exclusivamente através dele e sente que os outros também o reconhecem através dessa imagem, assim se distancia do seu “eu profundo”, coloca seu centro em um eu periférico e parcial, o qual não pode conter de modo algum toda sua realidade. Com este deslocamento, vai abrindo mão da possibilidade de um contato verdadeiro com o mundo exterior e consigo mesmo; e aqui estamos de volta ao que falamos antes, é necessário voltar ao próprio centro, reencontrar a nós mesmos.
Como havíamos dito, o relaxamento permite-nos conectar com essa consciência profunda de ser, consciência que nos permite sermos generosos, egoístas, burros, inteligentes, alegres, tristes e sempre eu. Porém um eu pleno.

P. – Como vocês praticam o relaxamento e como se pode combater a tensão? 

M.A. – Diferentemente de algumas disciplinas orientais, que praticam o relaxamento em total silêncio e parados – ainda que nós também pratiquemos este tipo de exercícios -, nós praticamos o que chamamos “relaxamento em movimento”. Ou seja, podemos nos relaxar em qualquer ação que estejamos realizando, sem que necessariamente tenhamos que deitar em um cama para relaxar e nos encontrar. Vocês fizeram há pouco alguns movimentos e devem ter sentido que são movimentos que propiciam um elevado grau de relaxamento, isto ocorre porque eles não estão baseados na contração. Por exemplo: uma flexão de braço pode ser feita de duas maneiras, uma com a contração do músculo, outra colocando a intenção de relaxamento no músculo oposto, porque para cada movimento há sempre um par de músculos envolvidos – o protagonista, e o antagonista -, se ponho a atenção no protagonista, vou fazer um movimento duro com muita força, o qual não se justifica se não estou levantando algo pesado. O que produz a tensão são essas contrações que não obedecem a algo funcional, chamam-se “contrações isométricas”; se eu tenho que levantar algo pesado, preciso fazer um certo esforço para realizar este movimento, há uma situação muito diferente se eu, em lugar de pensar em contrair o protagonista, penso no outro músculo que vai ser estendido e o relaxo para poder fazer o movimento. É o mesmo movimento, mas o que se produz ao nível psico-físico é completamente diferente. Se aprendo a trabalhar desta maneira, e isso é o que praticamos aqui nas aulas, chega um momento em que se pode fazê-lo em qualquer área. Além do que, nos damos conta de que a ação não é mais eficiente porque é feita com uma grande dose de contração, porém ao contrário. Por exemplo: é muito comum quando alguém quer por muita atenção em algo que franza os supercílios e a testa, tensionando esta região, e está comprovado que quanto mais tensão haja, menos pode compreender.

Outra maneira de relaxar a tensão é expressar-se, coisa que também praticamos nas classes; há outros que dissipam a tensão fazendo exercícios com a voz.

P. – Por que com a voz?

M.A. – Porque a voz está em uma das zonas mais travadas que temos e nós, os argentinos, em geral não temos uma boa emissão, talvez porque sejamos tímidos (a menos que estejamos em grupo). Ao contrário os espanhóis e italianos tem muita boa emissão de voz – estou falando no geral, porque ocorrem todos os casos. Nós falamos muito à partir da garganta, metade da voz fica presa dentro da garganta e vai se fazendo inexpressiva. Isto, devido, em grande parte, ao que já comentamos anteriormente, ou seja, recebemos uma educação que inibe a expressão, assim a emoção que nos provoca o que estamos dizendo fica travada, e com ela a voz, a garganta e uma quantidade de energia que, finalmente, nos provoca dano; por isso os trabalhos com a voz que são feitos nas classes, ou individualmente, são uma grande ajuda, pois permitem a descarga e o destravamento.

P. – Como identificar em que ponto cada um se encontra e qual tipo de trabalho necessita? 

M.A. – Inicialmente, há um tipo de trabalho geral que faz bem a todos, tenha a trava aqui ou ali, porque todos temos as mesmas articulações, os mesmos ossos, os mesmos músculos e vivemos em um mesmo lugar ou com características similares, de maneira que o movimento faz bem a todos.

Além disso, os instrutores desenvolveram uma capacidade de ver, o que se chama “leitura corporal”, que na realidade não sei se é corporal ou psico-física, porém de qualquer forma refere-se à sua pergunta. Assim, se alguém necessita um trabalho individual – se é que a pessoa por si mesma já não o começou – é proposta uma entrevista, faz-se uma ficha e aconselha-se uma massagem, uma corretiva de coluna, etc. e fazemos um acompanhamento.

Às vezes fazemos planejamentos individuais, por exemplo: 3 meses de ginástica harmônica e depois trabalho com a voz, etc. Alguma outra pergunta?

P. – O que se faz quando se está totalmente destravado?

M.A. – Isso nunca chegou a acontecer.

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