Textos de referência

A dança nossa de cada dia nos dai, hoje!

Autor: Michel Robin

Faço aqui um convite a observarmos os indivíduos de maneira geral em sua expressão cotidiana, em seu assim chamado “jeito de ser”- olhares, gestos, posturas, ritmos, forma de andar, respirar, falar e assim por diante. É possível traduzir esta expressão humana numa espécie de melodia que cada um de nós carrega consigo em forma de uma “dança” particular, própria, através da qual somos muito mais reconhecido do que por nossos traços anatômicos. Este reconhecimento se dá certamente com mais clareza pelos que nos cercam do que por nós mesmos, é assim …



Este “jeito de ser” é, em outros termos, a expressão de nossa psique, revelam os esforços de administrar os anseios da alma. É uma forma concreta, tangível de “ver”, “ouvir” e “tocar” o interior de cada um.


Nossos olhos são contemplados diariamente por “danças” como a dança do “bonzinho”, a dança do “arrogante”, do “lamentador”, do “irado”, do “sedutor” e por aí vai. Podemos mesmo estender a observação a grupos inteiros, deleitando-nos com as danças dos advogados, políticos, médicos, professores, cada um com sua melodia. Há ainda a dos jovens, a dos velhos, dos motoqueiros, dos punks e patricinhas, enfim divirtam-se … É inevitável, estamos todos dançando. Na nossa grande maioria, ouvindo velhas e repetidas melodias que habitam nosso interior. Isto seria apenas divertido, se tivéssemos consciência deste evento e pudéssemos optar por dançá-las ou não, mas é óbvio que não é este o caso. Estamos todos adormecidos e impregnados pela inércia do cotidiano. A esta altura é interessante ressaltar dois pontos. O primeiro, que os dançarinos profissionais estão tão sujeitos a inconsciência quanto qualquer indivíduo ou grupo profissional, e o segundo é a exceção a regra, que são as crianças (até por volta dos sete) em geral; maravilhosos dançarinos.



Existem no entanto alguns raros momentos, quando por um motivo extraordinário somos arrancados da monotonia das bolorentas melodias e suas respectivas danças e … despertamos. Isto pode se dar as vezes por uma paixão, as vezes por uma desgraça, grande medo, infinita alegria, ou mesmo inexplicavelmente. Nestes preciosos instantes somos transformados em dançarinos de uma melodia nova momentaneamente escutamos a Melodia Presente, a melodia que está tocando de fato, seja em volta ou dentro de nós mesmos. Por algum tempo, neste estado tornamo-nos estranhos, diferentes, irreconhecíveis. Nestes estados mudamos nossos gestos, olhares, tons de voz, nosso ritmo, respiração e consequentemente vemos o mundo com outros olhos, ganhamos algo de novo. Parece ser algo ansiosamente desejado: mudar. Mas quantos de nós carregamos lá dentro o desejo de “que as coisas mudem mas que tudo continue da mesma forma?” Não queremos perder nada, e sobre tudo, não queremos perder o controle das coisas e de nós mesmo. São portanto estes momentos extraordinários, evitados e temidos, também pelo fato de que aprendemos a nos identificar e reconhecer através das sensações, sentimentos e pensamentos proporcionados pelo conhecido e repetido.



O mundo, ironicamente, atravessa um momento peculiar, em que todas as circunstâncias, econômicas, ideológicas, sociais e institucionais, parecem conspirar para derrubar-nos de nossas posturas e melodias costumeiras e danças que já sabemos dançar. Nos damos conta estupefatos de que muitas de nossas danças não servem mais. Mas nossa inércia é ditadora, e brigamos para fazer tudo voltar à Sinfonia Antiga ou, na impossibilidade de volta, nos faz querer encontrar uma nova dança, e rapidamente fixá-la. Queremos “a solução” para podermos adormecer deitados sobre ela até o próximo despertar.



É possível viver desta maneira, ao sabor da chegada e partida destes momentos extraordinários. É assim que tem sido, assim viveram nossos pais e avós e temos dado como certa e inevitável esta maneira de viver.


Podemos no entanto desejar outra coisa: tornamo-nos dançarinos. Significa desejarmos estar despertos, significa desenvolvermos uma atenção maior, uma permeabilidade e flexibilidade maiores, uma capacidade de pensar, sentir e agir mais integradas, principalmente uma capacidade de ouvir a melodia presente. Ter o corpo físico e a psique aptos a dançar novas danças. Significa neste caso admitir que temos sido prisioneiros de nossas melodias e danças e desejar encontrar alguma saída, e encontrar saídas requer sempre saber aonde estamos. Além disto é preciso lutar contra a tentação do sono, de cairmos na repetição mecânica de nossas danças, portanto é necessário que nos associemos a outras pessoas que partilhem do mesmo desejo de manter-se desperto. Quando um adormecer, o outro, que estiver mais desperto, poderá nos acordar dizendo talvez: “Olha você não está ouvindo a melodia presente, você está dançando algum eco do passado”. É um momento delicado que muitas vezes nos enfurece, e que nos incita a apelar para todas as justificações de que “Não é bem assim”, e portanto requer paciência e pessoas em que confiar. Em suma, significa desejar, e aceitar, ser tirado para dançar com a Vida.


Podemos contemplar o fenômeno da dança como: uma habilidade e ou graciosidade de movimentos; um instrumento de integração social; um acontecimento artístico; um elemento que permite aliviar tensões; uma expressão folclórica; ou mesmo um elemento religioso (de religação); todos eles circunscritos a momentos especiais. No entanto, vejo a dança como algo a ser conjugado cotidianamente com todas as nossas células. Creio que a Dança é o propósito último humano, e expressão de sabedoria: Poder estar presente diante de cada momento, reverencia-lo porque único, escuta-lo e, na condição magnífica de ser humano, Dança-lo …. Amém.

compartilhe:

+ Posts

Etapas do trabalho? Parte 1

(* Este texto está dividido em duas partes)Autora: Maria Adela Palcos Primeira Etapa (nutrícia) Nesta primeira etapa, que poderíamos caracterizar como a fase nutrícia, o

Etapas do trabalho? Parte 2

(* Este texto está dividido em duas partes)Autora: Maria Adela Palcos Sustentamos a idéia que todo movimento começa, ou deveria começar, com um movimento reflexo.

O que e fazemos e para que? parte 1

(* Este texto está dividido em duas partes)Autora: Maria Adela Palcos – A trava psicológica e sua correlação corporal
- Trabalho sobre as diferentes plásticas Nos

Corpo e psiquismo – Parte 1

(* Este texto está dividido em duas partes)Autora: Maria Adela Palcos Sobre a importância do ritmo para recuperar e promover o equilíbrio psico-físico.  Inicialmente, vou

Corpo e psiquismo – Parte 2

(* Este texto está dividido em duas partes)Autora: Maria Adela Palcos Sobre a importância do ritmo para recuperar e promover o equilíbrio psico-físico. Pelo que

As 3 plásticas

Autora: Maria Adela Palcos Havia três escolas de autoconhecimento e transformação humana. Cada uma dispunha de variado instrumental para que o ser humano alcançasse sua

Sobre o serviço

Autora: Maria Adela Palcos TEXTO COMPLETO O ser humano como ser que ama. O ser humano como ser de serviço. Creio que temos que desenvolver,

Fale conosco